Boi Falô: como a lenda campineira ajuda a entender o apagamento do protagonismo negro na cidade

  • 20/11/2025
(Foto: Reprodução)
Como lenda do 'Boi Falô' revela apagamento de protagonismo negro em Campinas Enterrado na alameda principal do Cemitério da Saudade, espaço historicamente reservado às figuras mais importantes de Campinas (SP), o escravizado Toninho divide terreno com o túmulo do Barão Geraldo de Rezende. Seu jazigo ainda recebe inúmeras placas de agradecimento por graças atribuídas a ele — tantas que se espalham pela cruz e chegam até a calçada. Esse reconhecimento popular contrasta com sua presença na lenda do Boi Falô. Mesmo sendo o personagem central do episódio que deu origem à história, Toninho costuma aparecer em segundo plano nas versões que se tornaram populares. Para Alessandra Ribeiro, historiadora especialista em matriz africana, esse apagamento revela como o racismo estruturou a construção da memória da cidade, diminuindo a participação negra na formação de Campinas e reforçando a ideia de que o protagonismo histórico não caberia a pessoas negras. 📲 Participe do canal do g1 Campinas no WhatsApp Uma história que não fala apenas do boi Comemoração inspirada na "Boi Falô", de 1888 Tiago Gonçalves/G1 Segundo a versão popular, Toninho era o escravizado que teria ouvido o aviso do boi de que, por ser Sexta-Feira Santa, aquele não era dia de trabalho. Ele teria levado a mensagem ao Barão Geraldo de Rezende, responsável pela fazenda, que teria aceitado o pedido e liberado os trabalhadores naquele dia. Para Alessandra, essa história funciona como um registro feito pelo próprio povo sobre as relações de poder do período, mostrando as tensões entre escravizados e senhores no final do século XIX. A permanência dessa narrativa ao longo de mais de um século indica que algo marcante realmente aconteceu na Fazenda Santa Genebra e deixou cicatrizes na vida e na memória da cidade. "Campinas tem um marco de ser a última cidade que acabou com o processo de escravidão e não numa perspectiva continental, porque não tinha informação, mas porque o poderio centralizado e a agressividade que manteve o controle dos escravizados — que eram numericamente muito maior do que os próprios senhores dentro da cidade — fez com que as práticas se mantivessem até 1920", comentou Alessandra. Com o tempo, porém, o foco da história mudou. A versão mais conhecida passou a destacar o boi que fala, enquanto o papel de Toninho, a pessoa que de fato iniciou o episódio, foi diminuído. Para a historiadora, essa mudança revela como a memória oficial da cidade acabou tirando o protagonismo de uma figura negra e colocando no centro um elemento alegórico, o boi. Saiba mais sobre a lenda e a "Festa do Boi Falô": Tradicional festa do Boi Falô, em Campinas, carrega história, fé e cultura Apagamento histórico Túmulo de Toninho, personagem real da lenda, no Cemitério da Saudade, em Campinas Bianca Garutti O apagamento da figura de Toninho não ocorreu apenas na lenda, mas acompanha um processo histórico maior. Alessandra aponta que Campinas consolidou-se como um território marcado pela concentração de poder econômico e político nas mãos da elite escravocrata, o que contribuiu para a supressão de nomes, feitos e contribuições de pessoas negras ao longo do tempo. Esse silenciamento se reproduziu socialmente, criando uma memória coletiva que tende a exaltar personagens brancos ou elementos simbólicos e invisibilizar a participação negra. No campo do pensamento acadêmico, a pesquisadora sobre ciência afro-brasileira, Talita Azevedo, utiliza o conceito de epistemicídio para definir esse processo. 🔎O que é epistemicídio? Segunda a pesquisadora, o termo refere-se à eliminação ou deslegitimação dos conhecimentos ancestrais afro-brasileiros, que passam a ser tratados como folclore, superstição ou curiosidade, e não como expressão legítima de produção de saber. Toninho como cientista Talita também propõe uma revisão da forma como Toninho deve ser compreendido. Em vez de limitar a ideia de ciência aos laboratórios e métodos eurocêntricos, ela retoma uma concepção africana de conhecimento que entende o cientista como aquele que observa, experimenta, interage com a natureza e gera saberes aplicáveis à vida coletiva. "No recorte de ciência e filosofia afro-brasileira, a gente vai pensar numa interação de indivíduos com o mundo. Então, produzir ciência, produzir conhecimento vai ser a forma como um indivíduo vai se relacionar com o mundo à sua volta e vai se relacionar com os integrantes do mundo à sua volta. Então um cientista aqui vai ser uma pessoa que vai ter conhecimento sobre algo", explicou Talita. Nesse sentido, curandeiros, benzedeiras, sacerdotes e anciãos das comunidades são produtores de conhecimento sistemático sobre plantas, saúde e equilíbrio social. Segundo Talita, Toninho aparece nessa tradição como figura de consulta e respeito comunitário, alguém reconhecido por seu domínio das práticas terapêuticas e espirituais. Para a pesquisadora, essa releitura devolve ao escravizado o papel de agente histórico, reposicionando-o como produtor de conhecimento e não como personagem auxiliar da narrativa que ajudou a construir. Memória em disputa na cidade Para Alessandra Ribeiro, o apagamento de Toninho não é um caso isolado, mas parte de um padrão que estruturou a memória oficial de Campinas. Ela explica que diversas personalidades negras de grande importância – como Francisco Glicério, primeiro vereador da cidade – foram gradualmente esvaziadas de sua identidade racial ao longo do tempo, fazendo com que suas contribuições passassem a ser reconhecidas sem a marca de sua negritude. "Essa dicotomia que rompe com a personalidade e a contribuição concreta com o corpo e a história é um ato de racismo e um apagamento. Essa é a luta antirracista que a gente faz até hoje: fazer com que as pessoas reconheçam a contribuição negra a partir também de suas personalidades e dos corpos que elas carreguem, porque a tendência é a gente pensar que toda grande personalidade é branca", explicou Alessandra. De acordo com a historiadora, esse tipo de reescrita histórica contribui para manter a ideia de que o protagonismo da formação do município está associado majoritariamente a figuras brancas, enquanto as contribuições negras aparecem descontextualizadas, atribuídas a outros elementos ou tratadas como notas secundárias. Cemitério como ato político Túmulo de Toninho fica na Alamenda Central do Cemitério da Saudade, em Campinas Bianca Garutti Se a versão mais difundida da lenda e a festa popular ainda colocam o boi no centro, o Cemitério da Saudade acabou se tornando um espaço de resistência da memória. Alessandra interpreta as placas deixadas no túmulo de Toninho como um gesto político e comunitário. Mesmo que partam da devoção individual, elas funcionam como reafirmação pública de sua importância e ajudam a inscrever sua história na materialidade da cidade. Assim, o local onde Toninho foi enterrado e a permanência contínua de homenagens anônimas torna-se uma forma de preservar sua presença e reforçar que seu papel permanece vivo no imaginário social, mesmo diante dos apagamentos que marcaram a história oficial. "Quando cada pessoa na sua devoção acompanha uma graça e vai colocar uma plaquinha, traz essa memória para o presente. Eu penso que com certeza é uma ação de tentar evidenciar e dar protagonismo ao verdadeiro protagonista dessa história" disse Alessandra. Lenda se torna festa popular A lenda campineira deu origem ao tradicional evento "Festa do Boi Falô", que ocorre às sextas-feiras santas, na Praça do Coco, no distrito de Barão Geraldo, e já completou 29 edições. A festa é considerada a maior celebração popular de Barão Geraldo, e costuma reunir grupos culturais e decoração. *Sob supervisão de Jéssica Stuque Tradicional festa do Boi Falô, em Campinas, carrega história, fé e cultura VÍDEOS: tudo sobre Campinas e região Veja mais notícias da região no g1 Campinas

FONTE: https://g1.globo.com/sp/campinas-regiao/noticia/2025/11/20/boi-falo-como-a-lenda-campineira-ajuda-a-entender-o-apagamento-do-protagonismo-negro-na-cidade.ghtml


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