Por que cresce a procura por tatuadores especializados em pele negra e como o racismo ainda influencia o mercado

  • 20/11/2025
(Foto: Reprodução)
Mito de que “tatuagem não funciona em pele negra” ainda circula e afasta clientes Reprodução/Instagram Uma cliente procurou o tatuador Fabio Lopes com um pedido especial: registrar no corpo o pé de araçá sob o qual nasceu, no Quilombo Kalunga, na Chapada dos Veadeiros (GO), maior comunidade quilombola do país. Ao ver o desenho finalizado, ela colocou a mão no peito, respirou fundo e chorou. "Essa tatuagem simboliza bastante o meu trabalho", diz o tatuador, que finalizou a arte na terça-feira (18), em um estúdio em Brasília, após criar uma composição que unia a árvore a referências da história da cliente, antes de volta para a capital paulista, onde atende no Sacomã, na Zona Sul. No desenho, a árvore segura uma criança nos braços, numa imagem que remete à maternidade e ao acolhimento (veja abaixo). “Era a primeira tatuagem grande dela. A reação dizia mais sobre identidade do que sobre estética", afirma. O episódio reflete um movimento que cresce no Brasil: a procura, por pessoas negras, por tatuagens que expressem ancestralidade, religiosidade e pertencimento — e a busca por profissionais com domínio técnico sobre diferentes tonalidades de pele. Ao mesmo tempo, revela barreiras históricas e o racismo estrutural que ainda moldam o mercado. Veja os vídeos que estão em alta no g1 Não há um levantamento sobre quantos brasileiros têm tatuagem nem tampouco um com recorte racial. Uma pesquisa do instituto alemão Dalia, de 2019, porém, estima que mais de 30% dos brasileiros — cerca de 60 milhões de pessoas — são tatuados. Segundo o instituto, o Brasil é o nono país com mais pessoas tatuadas. Os cinco primeiros são Itália, Suécia, Estados Unidos, Argentina e Austrália. O mercado de tatuagens e piercings cresceu 35% entre 2019 e 2022, em todo o país, segundo levantamento realizado pelo Sebrae. São Paulo, Minas Gerais e Rio de Janeiro são os três estados com o maior número de estabelecimentos. Deuzite Cunha, que se emocionou ao ver o desenho finalizado Fabio Lopes Racismo e apagamentos históricos Com quase 150 mil seguidores nas redes sociais, Fabio começou a tatuar em 2020. A principal motivação, segundo ele, foi perceber como o preconceito associado à tatuagem se intensificava quando o assunto era pele negra. "Quero desmistificar a ideia de que tatuagem é ‘coisa de branco’", afirma. Hoje, o tatuador não atende em nenhum lugar fixo porque viaja oito estados para trabalhar. A doutora em Mudança Social e Participação Política pela Universidade de São Paulo (USP) Eliane Almeida explica que, por décadas, circulou no mercado a ideia de que “tatuagem não funciona em pele negra”. “Esse mito não tem base técnica. Ele foi criado e reproduzido por tatuadores brancos. E acabou afastando pessoas negras desse universo”, diz ela, que tem cinco tatuagens. Segundo a pesquisadora, práticas de marcar a pele fazem parte de diversas culturas africanas e indígenas há séculos, com funções de rito, pertencimento e transmissão de conhecimento. O incômodo atual, afirma, surge porque pessoas negras voltaram a registrar símbolos e referências de suas origens. “Estamos tatuando nossos ancestrais, nossos orixás, nossos adinkras. E isso mexe com estruturas", acredita. 🌀 Adinkras são símbolos gráficos de origem africana, criados pelos povos Akan (atualmente em Gana e Costa do Marfim). Cada figura representa uma ideia filosófica, moral ou espiritual — uma espécie de provérbio visual que carrega ensinamentos ancestrais. Nas redes sociais, circulam vídeos que orientam tatuadores a evitar trabalhos em peles mais escuras e desencorajam pessoas negras a se tatuar — especialmente quando o desenho é colorido. Para a pesquisadora, a atitude de não querer tatuar pessoas negras pode ser vista como uma tática de racismo e parte do que a escritora Cida Bento chama de "pacto narcísico da branquitude". Técnica existe, falta formação A tatuagem é uma das formas mais antigas de modificação corporal. Como não há preservação de pele humana de épocas muito remotas, pesquisadores usam registros arqueológicos e amostras mais recentes para estimar quando os primeiros desenhos surgiram. Entre os achados mais conhecidos estão as múmias egípcias, como a de Amunet, que teria vivido entre 2160 a.C. e 1994 a.C. e apresenta pontos e traços na região abdominal — possivelmente ligados a rituais de fertilidade. Outro exemplo é o Homem do Gelo, múmia de cerca de 5.300 anos encontrada nos Alpes em 1991, com várias linhas azuis tatuadas pelo corpo. Os grupos marginalizados que difundiram a tatuagem no Brasil Segundo a pesquisadora Eliane, a marcação na pele negra também remonta ao passado com registros de escarificação (técnica de modificação corporal que consiste em produzir cicatrizes no corpo), que é praticada por várias etnias africanas como uma marca de pertencimento na comunidade. Tatuadores experientes afirmam haver diferenças entre tatuar peles claras e mais escuras, mas que todas são plenamente tatuáveis quando a técnica é aplicada corretamente. O problema, segundo eles, é a falta de preparo na formação. Tatuadores Fabio Lopes (à esquerda), Hellen Zumbi (no centro) e Ubiratam Amorim (à direita) Reprodução / Instagram O tatuador Ubiratan Amorim, com 13 anos de carreira, explica que peles negras exigem menos diluição do pigmento preto e atenção ao contraste. Ele atende no Anália Franco, Zona Leste de São Paulo. “Em peles negras, é importante deixar mais espaço de pele para garantir contraste e evitar que o desenho fique opaco. No preto e cinza, usamos menos diluição, para que o pigmento fique mais intenso. Cores até podem ser aplicadas, mas a chance de perder legibilidade depois da cicatrização é maior", explica. Segundo ele, dá para fazer o colorido também na pele negra, mas o pigmento vai "descer", ou seja, a probabilidade de o trabalho "fechar" e a pessoa não conseguir visualizar o desenho de uma forma limpa é muito maior. Por essa razão, ele foca no preto e cinza ou no preto e branco. Para o tatuador Rodrigo Koala, que participou da Tattoo Week 2025, projetos maiores costumam funcionar melhor. Ele atende em Feira de Santana (BA), onde a maioria do público é negra. “Se você aplicar a mesma lógica usada na pele clara, a tatuagem perde legibilidade”, diz. Segundo ele, cores não são recomendadas: a melanina funciona como filtro natural e altera o tom após a cicatrização. A tatuadora Hellen Zumbi, que atende no Centro de São Paulo, reforça que o processo é técnico, mas também emocional. “Muitas pessoas negras chegam com histórias de racismo: tatuadores que se recusaram a atendê-las ou familiares que compararam seus resultados com os de pessoas brancas”, conta. “É fundamental explicar o processo de cicatrização e cuidados, já que peles mais escuras podem ser naturalmente mais secas.” Falta representatividade no setor As barreiras também aparecem na estrutura do mercado. Convenções de tatuagem ainda usam majoritariamente pessoas brancas como modelos nas competições — apesar de 56% da população brasileira se declarar preta ou parda, segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). O Tattoo Week, considerado o maior festival do mundo, teve 32 categorias este ano — e nenhuma específica para técnicas em pele negra. “As convenções são ambientes hostis. Jurados pedem contraste e favorecem peles claras. Alguns tatuadores chegam a publicar pedidos por ‘telas brancas’ para competir”, diz Fabio Lopes, citando a gíria usada para se referir ao corpo da pessoa que será tatuada. “Categoria é estilo, não corpo. Estilo é fineline, neotrad, blackwork, oldschool, e por aí vai. Criar categorias para peles escuras reforça o corpo negro como exceção”, argumenta Fabio. Segundo ele, a raiz do problema é estrutural: materiais, cursos e referências internacionais foram desenvolvidas para países em que a maioria da população é branca. Autoestima, identidade e futuro Apesar das barreiras, tatuadores relatam crescimento rápido da procura por parte de pessoas negras — especialmente jovens que buscam símbolos afro-diaspóricos, religiosos ou ligados à própria história familiar. Para Hellen Zumbi, isso acompanha o avanço do debate racial no país. “Com mais letramento e mais referências positivas, pessoas negras buscam se ver e se afirmar na própria pele — literalmente", diz. A pesquisadora Eliane Almeida avalia que tatuar símbolos africanos, indígenas ou religiosos também funciona como resgate cultural. “A pele vira espaço sagrado e de reencontro com a ancestralidade.” Para Fabio Lopes, histórias como a da cliente quilombola se repetem cada vez mais. “Ela não queria apenas um desenho. Queria carregar uma memória. E essa memória encontrou, na pele dela, o lugar onde sempre deveria ter estado.” Segundo ele, seu trabalho na tatuagem é fazer o movimento de sankofa (outro símbolo e um provérbio dos povos akan): retornar ao passado para buscar conhecimento e ressignificar o presente, a fim de construir um futuro melhor.

FONTE: https://g1.globo.com/sp/sao-paulo/noticia/2025/11/20/por-que-cresce-a-procura-por-tatuadores-especializados-em-pele-negra-e-como-o-racismo-ainda-influencia-o-mercado.ghtml


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